quinta-feira, 18 de junho de 2009

CANTAR PARA CONTAR:
VEM FICAR COMIGO!
Pr. Allison S. Ambrósio


Foi há muito tempo atrás. Eu estava indo à casa de uma amiga muito querida, no bairro Cruzeiro Novo, no Distrito Federal. Eram mais ou menos oito da noite quando me aproximei do prédio que estava às escuras. Um black-out qualquer, bem comum naquele tempo naquela região e eis toda uma quadra residencial contemplando o brilho das estrelas. Se todos fizeram isto, eu não sei. Ela fez.

Ao olhar na direção de seu apartamento pude ver sua silhueta, sentada na janela de uma forma no mínimo estranha. Observando melhor percebi que sua disposição era a de apenas desfrutar daquele céu brasiliense sem nuvens, cujo brilho das estrelas era realçado pela falta de energia elétrica. Seu corpo estava ancorado na janela, enquanto seu coração ia longe...

Aquela visão, longe de me parecer romântica foi de intensa carga reflexiva. Vi-me naquela experiência, como que pegando emprestado aquele momento de minha amiga para me perceber, tendo a oportunidade de passar a limpo a trajetória até ali. Além dela, resolvi devanear e pensar sobre pessoas que, diferente de solitude enfrentam profunda solidão. Em tempo: solitude é o ato voluntário de se afastar, de experimentar um tempo isolado de todos. Solidão é a ausência não desejada, não programada, contingenciada pela falta de pessoas queridas ao redor. A solitude fortalece a serenidade; a solidão adoece o espírito.

Na solitude somos encorajados a refletir sobre nossos movimentos na vida e pela vida, enquanto na solidão somos arrastados impotentes, em direção a uma mórbida indolência e desesperança. Na solitude percebemos as falhas cometidas, com o propósito de ajustar novamente o foco e seguir adiante. Na solidão somos tentados a nos alimentar dos erros, quais manjares indispensáveis ao nosso projeto de autodestruição. Na solitude somos construídos. Na solidão, dissolvidos. Da solitude saímos para o enfrentamento da vida. Na solidão tememos o minuto seguinte. O personagem do meu devaneio estava solitário. Foi quando comecei a cantar as primeiras letras:

ÀS VEZES INSEGURO, TENTO ACHAR UM JEITO
PARA ENTÃO FICAR SOZINHO
E NESSAS HORAS PENSO EM MIM TÃO IMPERFEITO
ORGULHOSO E TÃO MESQUINHO

Porém, longe de ser algo querido ou buscado, a solidão chega e usurpa seu espaço, tornando-nos réus e verdugos de nós mesmos. O orgulho nos cala, a ponto de não conseguirmos gritar às pessoas mais próximas o quanto estamos sofrendo, o quanto nos seria preciosa qualquer demonstração de carinho, de afeto ou outro gesto que nos faça perceber incluídos. O desespero aumenta, na medida em que nada encontramos. A ninguém encontramos, percebendo assim que teremos que agir e reagir segundo as poucas forças que ainda nos restam.

O Dr. Dráuzio Varela, escrevendo sobre o presídio Carandiru, verdadeiro depósito de seres humanos em São Paulo e agora desativado, registrou a história de um detento que traficava heroína ali. Para explicar a maneira de produzir seringas de aplicação da droga, o preso respondeu: “segundo recursos próprios de mim mesmo”. Achei interessante aquela resposta. Ele era o fornecedor e o cliente. Da manufatura ao consumo, ele só podia contar consigo mesmo. Parece o solitário da nossa história. Um tipo parecido com o descrito por Paulo, o apóstolo em sua carta aos Efésios: “não tendo esperança e sem Deus no mundo” (Ef. 2:3).

É quando se busca nos porões da alma, qualquer coisa que nos habilite, nos credencie a continuar lutando, insistindo com a vida, em um debater-se teimoso e apaixonado. Meu personagem, pinçado daquele quadro, daquela janela, daquela amiga era assim. Ele vasculhava o mais profundo de si, em busca de algo que o convencesse que, como a canção de a Angela Rô Rô, “a vida é bela, só nos resta viver”. Foi assim que pensei ao prosseguir:

E ME DEFENDO, TENTO ME ESCONDER DA MENTE
QUE ME FERE E ME CONSOLA AO MESMO TEMPO
TENTO PENSAR NAS COISAS BOAS PRATICADAS
MAS, COITADAS, POUCAS, LEVADAS AO VENTO...

Claro que não era o caso, nem meu nem dela que, ao contrário do meu devaneio aproveitava aquele momento para dar asas a sua imaginação e fazer também uma pequena canção. Na verdade, nem sei o porquê de eu ter pensado em alguém como esse “eu” que se esconde detrás de muitos rostos bonitos e que esbanjam vitalidade. Quanta miséria há por trás de sorrisos brilhantes e falas macias, na guerra perene do ego ao mascarar quem nós somos verdadeiramente.

Em um velho programa humorístico, vi um quadro que não mais esqueci. Duas mulheres da alta sociedade que se encontraram e, depois dos clássicos e plásticos beijinhos à distância, uma diz à outra: “Querida, fico sempre encantada com você! Nunca consigo encontrar você sem estar sorrindo bastante. Acho formidável seu bom humor!”. Ao que a outra respondeu: “Querida, não é que eu esteja sorrindo sempre. Com a plástica que fiz, fico assim o tempo todo! Agora mesmo, por exemplo, EU TÔ CHORANDO PACAS!”.
Sempre que penso nos comportamentos afetados, dissimulados que encontro vem à minha mente esse quadro. É a fotografia do nosso tempo, quando não se pode acreditar no que as pessoas nos apresentam de si mesmas sem conferir antes sua veracidade. E, ao perceber-se assim, meu personagem da canção se sente ainda pior:

ME ADMITO ASSIM TÃO MAU, TÃO PERVERTIDO
ME ACHO MEU PRÓPRIO INIMIGO...

Mas, a miséria retratada sem a graça de Deus para contê-la torna-se a maior desgraça que alguém possa experimentar! É por isso que outro texto de Paulo é tão reconfortante, quando afirma que “onde abundou o pecado, superabundou a graça!” (ver). Somente a graça de Deus me permite enfrentar os meus medos, os meus monstros interiores e não adoecer na alma. Ela não me exime da realidade, quem sou realmente e como estou no momento presente, mas abre uma porta inefável de alívio e redenção a partir de Cristo Jesus, o seu filho. Não há constatação de fracasso, de impropriedade ou desvalorização que se sustente, ante a paixão demonstrada no calvário. Sendo assim, a resposta para esse personagem que não é ninguém mais que algumas nuanças de nós mesmos não poderia ser diferente:

E O MEU REFÚGIO ENCONTRO EM CRISTO
E ASSIM INSISTO: Ó MEU DEUS
VEM FICAR COMIGO!

Em uma das cenas de minha infância, recordo uma historinha que havia em meu livro escolar. Um porquinho rosado e alegre se afastou dos seus irmãos e, conseqüentemente de sua mãe. Um cachorrinho que rondava o grupo, ao perceber o afastamento do pequeno animal correu em sua direção, querendo mostrar sua superioridade. O porquinho assustado retorna correndo, buscando de sua mãe a própria legitimidade, a sensação de pertencimento e autoconfiança. Ao sentir-se seguro novamente, ele se volta para o cãozinho e o enfrenta. Sabe que nada mudou em si mesmo, a não ser a confiança renovada de que não está só. Acho que é isso mesmo que precisamos lembrar. Cristo sempre está perto. Ele prometeu. Está a uma oração de distancia, de um servo que pede humildemente: VEM FICAR COMIGO?